sexta-feira, 13 de agosto de 2010

A temida água-viva


Mantenha distância, porque elas 'queimam'. Inclusive quando as encontramos já mortas na areia de beira-mar. Estas duas frases reúnem, para o público em geral, quase todo o conhecimento sobre águas-vivas. Alguns curiosos acrescentam receitas caseiras e simpatias - comprovadamente inúteis no tratamento das 'queimaduras'. E é só. Uma imensa injustiça, para dizer o mínimo, com as mais de 10 mil incríveis espécies de cnidários e ctenóforos registradas em todo o mundo, tão variadas entre si e tão diferentes das outras formas de vida aquática que sobre elas já pairaram até dúvidas básicas, como determinar se pertencem ao mundo vegetal ou animal. Houve um tempo, inclusive, em que eram considerados seres limítrofes, com uma fase vegetal (pólipos) e uma fase animal (medusas). Hoje se sabe que são animais. Estranhos, bem estranhos, mas animais.
 
Chamamos de água-viva a uma grande variedade de 'gelatinas', em geral transparentes ou translúcidas, com tentáculos e corpo em forma de guarda-chuva (em inglês, umbrela, o termo tecnicamente usado para designar a parte superior de seu corpo). A maioria das espécies é marinha, mas algumas vivem em água doce. O tamanho da 'umbrela' - a parte superior, onde fica a boca - varia de um milímetro a um metro de diâmetro. O comprimento dos tentáculos, quando esticados, impressiona: uma caravela (Physalia physalis), dessas fáceis de encontrar nas praias brasileiras, chega a ter tentáculos de até 30 metros! E eles 'queimam' em toda sua extensão, além de grudar na pele!
 
Águas-vivas não têm cérebro, mas possuem sistema nervoso e estruturas sensoriais, usadas na detecção de presas e predadores. Elas também não têm sangue, mas um sistema gastro-vascular, que se encarrega da distribuição dos nutrientes e eliminação dos excrementos. Quase 100% das espécies são carnívoras. Alimentam-se de peixes, crustáceos, outras medusas ou demais organismos do plâncton. E são apresadas também por peixes, crustáceos e moluscos, além das tartarugas.Octophialucium bigelowi é uma das espécies de água-viva que apresa outras medusas. E diversas águas-vivas do grupo ctenóforos também têm predileção especial por outras 'gelatinosas' em seu cardápio.
 
A capacidade locomotora, porém, não é das melhores. Em geral, elas não encaram grandes distâncias - a não ser de carona nas correntes marinhas - e nem controlam bem a direção a seguir. Algumas utilizam movimentos ciliares para nadar, caso de todo o grupo chamado Ctenophora, cujos cílios longos, fundidos e agrupados em placas, batem sincronizados. Seu deslocamento é limitado e lento, mas quase sempre constante.
Outras nadam por propulsão a jato: abrem e fecham o corpo gelatinoso em forma de 'guarda-chuva', expelindo rápida e fortemente a água a cada contração, e tomando impulso para frente. A eficiência do deslocamento depende da forma do corpo de cada espécie. As mais altas do que largas - comoTurritopsis nutricolaLeuckartiara octona e Dipurena reesi - conseguem produzir jatos mais potentes. Para quem as observa, nadam aos 'soluços', por pulsos. Mas não nadam o tempo todo. E, quando param, afundam lentamente. Então estendem os tentáculos, descendo devagar e 'pescando' de forma passiva, como quem cobre suas presas desavisadas com uma 'tarrafa' ou teia de aranha, feita de fios tóxicos armados, caso da Olindias sambaquiensis.
 
As espécies mais largas do que altas - como Cunina octonariaAequorea sp., Phyllorhysa punctata eLychnorhiza lucerna - costumam percorrer os mares 'a remo': movimentam a borda de seu 'guarda-chuva' de maneira ritmada e constante. Seu deslocamento é mais suave e desempenha papel importante na alimentação, pois os pequenos turbilhões que se formam ao redor de tais 'remos' direcionam as presas para os tentáculos e braços orais (que conduzem a comida à boca). Essas espécies se alimentam enquanto nadam, abocanhando peixinhos, larvas ou planctontes, de acordo com Alvaro E. Migotto, do Centro de Biologia Marinha da Universidade de São Paulo (CEBIMar-USP), um dos poucos pesquisadores brasileiros especializados em medusas.
 
As estratégias de locomoção funcionam razoavelmente bem para a caça, aliadas à camuflagem proporcionada pela transparência. Mas não servem para fuga ou grandes deslocamentos. E o principal problema é o direcionamento dos movimentos. Na verdade, o melhor sistema de navegação das águas-vivas é não ter sistema algum: durante a maior parte do tempo, elas vivem à deriva, ao sabor das correntes marinhas de várias profundidades ou do vento, caso das caravelas e outras espécies de superfície. Devido a tal característica, quando as correntes mudam de direção ou ocorrem ventos fortes do mar aberto para o litoral, surgem bandos imensos de águas-vivas, que muitas vezes acabam acidentalmente capturadas nas redes de pescadores ou são jogadas nas praias pelas ondas. Em compensação, muitas vezes vivem sem endereço certo e assim estão um pouco menos sujeitas às pressões de poluição, coleta excessiva ou mesmo extermínio intencional (para reduzir as chances de acidentes).
 
Para compensar sua limitação como seres nadadores, as águas-vivas contam com um fantástico arsenal químico. "O maior investimento evolucionários desses seres está nas toxinas e outras substâncias químicas, que são capazes de produzir", acrescenta Alvaro Migotto. "As medusas - bem como todo grupo ao qual pertencem, os cnidários - se equipam com verdadeiras armas de injeção de toxinas, tecnicamente chamadas de cnidas. Trata-se de uma estrutura celular microscópica extremamente complexa, que explode ao menor toque, cortando como uma navalha e perfurando ao mesmo tempo em que descarrega o veneno, armazenado numa cápsula. São toxinas muito poderosas, capazes de imobilizar as presas em questão de segundos ou mesmo frações de segundo. Esse poder químico explica o sucesso das medusas como predadores, compensando suas limitações na locomoção e os sistemas nervoso e sensorial pouco desenvolvidos". Tais substâncias tóxicas ou antigênicas vêm despertando o interesse da pesquisa para a produção de novos fármacos.
As 'armas mortais' têm somente 0,01 a 0,1 milímetro, mas são centenas ou muitos milhares delas em cada tentáculo. E sua eficiência é tão grande que elas furam o esqueleto de crustáceos (exoesqueleto) e penetram como uma broca, atingindo a corrente sanguínea em milésimos de segundo.
 
As águas-vivas mais perigosas estão entre as maiores e mais visíveis. Pertencem aos grupos Scyphozoa e Cubozoa, exceto pela caravela, que é um Hydrozoa. Existem cerca de 200 espécies conhecidas de Scyphozoa e somente 20 a 30 de Cubozoa. Mas este último grupo tem fama mundial por causar a maior parte dos acidentes com gente, incluindo cerca de 100 casos fatais registrados no último século. A espécie que oferece mais risco para o homem é a vespa-do-mar (Chironex fleckeri), cujo veneno é neurotóxico e hemolítico causa arritmia cardíaca, problemas respiratórios e pode matar em poucos minutos!
Pouco se sabe acerca do pólipo da maioria das espécies de Cubozoa. Mas as medusas de algumas delas - como a Carybdea sivickisi, com apenas 1 cm - durante o dia se prendem do lado de baixo das pedras, algas e corais. À noite saem para caçar peixes e crustáceos e são atraídas pela luz. Os mergulhadores noturnos, portanto, devem ficar atentos: mesmo o contato com uma única dessas 'medusinhas' causa muita dor. E olhe que na época da reprodução dos corais, uma vez por ano, elas surgem aos milhares!
 
Para quem nada e mergulha em águas brasileiras, felizmente, essas duas espécies de Cubozoa vivem bem longe, no Oceano Pacífico, ao norte da Austrália. Mas é bom não relaxar demais: por aqui, as espécies Tamoya haplonema e Chyropsalmus quadrumanus, além da já mencionada caravela, podem fazer muito estrago! E as 'queimaduras' de Olindias sambaquiensis também não são desprezíveis, ainda que menos graves.
Em águas brasileiras, as espécies menores - de 1 mm a 10 cm - não são tão urticantes. Há aquelas que 'queimam' apenas nos locais onde a pele é mais delicada e não causam irritação nas palmas das mãos ou planta dos pés, onde a pele é mais grossa. E muitas nem mesmo são percebidas, por que não podemos senti-las nem vê-las, protegidas que ficam pela suavidade do corpo gelatinoso e por suas transparências, caso de Turritopsis nutricola e Dipurena reesi.
 
"Para estudar as águas-vivas, ou mesmo para identificar as espécies, em geral precisamos coletar os pólipos e mantê-los em aquários especiais até que completem o ciclo de vida e cheguem à fase de medusas. Muitas espécies se parecem bastante na fase de pólipo, mas apresentam pequenas diferenças morfológicas na fase adulta", explica Alvaro Migotto. "Uma vez separadas nos aquários, temos que descobrir o que comem e quais as condições ideais para crescimento e reprodução. Temperatura e salinidade da água, por exemplo, fazem muita diferença. Elas também respondem à luz, diferenciando claro e escuro. Existem espécies de vida efêmera, que nascem, crescem e se reproduzem em apenas algumas horas, e outras que vivem meses. Na média, elas atingem a maturidade - isto é, ficam prontas para se reproduzir sexuadamente - em algumas semanas".
O ciclo de vida das águas-vivas é outro objeto de estudos e mais estudos. De certa forma, elas fogem aos padrões produtivos dos demais animais, variando imensamente nas formas de reprodução, não só de espécie para espécie como de indivíduo para indivíduo de uma mesma espécie. A grosso modo, as águas-vivas passam primeiro por uma fase de pólipo, na qual parecem uma planta com 'ramos' translúcidos, balançando com as ondas e correntezas. Os pólipos se fixam em rochas, corais, cascos de barcos, plásticos, algas ou qualquer substrato disponível. Algumas espécies são mais exigentes, outras grudam em qualquer coisa que esteja boiando, e saem à deriva, mar afora.
 
Num determinado momento - cujo 'gatilho' os cientistas ainda penam para decifrar - 'brotam' medusas dos 'ramos' do pólipo e tem início a fase de vida livre. As medusas são consideradas as águas-vivas adultas e se reproduzem de forma sexuada: seus óvulos e espermatozóides são liberados na água, onde ocorre a fecundação, dando origem a larvas. Estas voltam a se fixar feito plantinhas para crescer: são novos pólipos. Ocorre que, depois de crescido, um mesmo pólipo pode dar origem a uma só medusa ou diversas. Pode gerar medusas machos ou fêmeas e, eventualmente, machos e fêmeas. E também pode dar origem a outros pólipos, multiplicando-se de forma assexuada como uma planta que perfilha ou forma touceira. Em resumo, no quesito reprodução, elas quebram todos os tabus e dão um baile na Ciência.
 
Não é à toa que são associadas à Medusa da mitologia grega. Medusa é o nome de uma das três Górgonas: irmãs monstruosas, inimigas dos principais heróis legendários. Elas tinham cabelos de serpente e um olhar fatal, capaz de transformar homens e animais em pedra. Medusa era a única mortal. As outras duas - Ésteno e Euríale - eram criaturas imortais. A 'cabeça' cheia de tentáculos das águas-vivas reflete bem a imagem da Medusa e seus cabelos serpenteantes. E o mito do olhar petrificador serve também para traduzir o efeito paralisante das toxinas no organismo das vítimas das águas-vivas.
 
Mas a Medusa grega não era apenas um símbolo da morte. Há versões que a tratam com uma mulher linda, pela qual se apaixonou Poseidon, o deus dos mares. E os dois desafiaram Atenas, a deusa da sabedoria, consumando seu amor no templo dedicado a esta. Como castigo, Atenas transformou Medusa numa criatura da qual ninguém podia se aproximar. Exatamente como nossas águas-vivas, com suas fascinantes e perigosas transparências!   

Cuidado com os primeiros socorros!
 
Tocar os tentáculos de algumas águas-vivas é muito doloroso, mesmo quando elas já estão mortas. O acidente pode ocorrer dentro ou fora d'água e pede tanto rapidez como consciência no atendimento à vítima. Sobretudo porque alguns tratamentos baseados em crendices podem piorar o efeito da 'queimadura', causando dor ainda mais intensa ou infecções secundárias, às vezes graves e com seqüelas.
Atenção, portanto, às dicas de primeiros socorros do médico Vidal Haddad Junior, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), um dos maiores especialistas brasileiros em acidentes com animais peçonhentos marinhos e fluviais. No início de 2005, Haddad Jr. editou o folder Animais marinhos: prevenção de acidentes e primeiros cuidados, em parceria com Alvaro E. Migotto, do CEBIMar-USP, e Shirley Pacheco de Souza, do Instituto Terra & Mar. O folder está à disposição para download gratuito na Internet, no site www.usp.br/cbm/figuras/folheto_animais_marinhos.pdf.
 
As substâncias tóxicas das águas vivas ficam dentro de minúsculas cápsulas, dotadas de filamentos enrolados e invertidos. São verdadeiras 'armas' de injetar toxinas. O sistema de injeção é rapidíssimo e extremamente eficiente: funciona mesmo se o tentáculo for separado da água-viva. As cápsulas são chamadas de cnida ou urtiga em grego. Daí vem o nome científico das águas-vivas e seus parentes (anêmonas e corais): cnidários.
 
Dependendo da espécie de água-viva, as toxinas causam irritação forte da pele e dor intensa, formando vergões avermelhados. Pedaços dos tentáculos podem ficar grudados na pele. Nos casos mais graves, provocam cãimbras, náuseas, vômitos, desmaios, convulsões, arritmias cardíacas e dificuldade para respirar. Além de tudo isso, as toxinas de cubomedusas (grupo Cubozoa) causam lesões muito dolorosas e necrose da pele.
As cnidas 'disparam' (injetam toxinas) quando tocamos ou só passamos perto dos tentáculos. Muitas cnidas também grudam na pele sem 'disparar' e sem que as vejamos. Por isso, em caso de acidente, a primeira dica é remover os tentáculos grudados na pele com a proteção de uma luva, pinças ou a lâmina de uma faca e jamais esfregar a região ferida, para não disparar as cnidas ainda intactas, injetando mais veneno.
 
As cnidas também podem disparar se sujeitas a diferenças de salinidade (osmose). Isso quer dizer, em português claro, que a região do corpo atingida por uma água-viva marinha não deve ser lavada com água doce.
O resfriamento alivia a dor intensa, portanto é recomendado colocar gelo sobre a ferida. Mas atenção: o gelo deve ser de água salgada e nunca de água doce. Como é difícil ter à mão gelo marinho, uma alternativa é colocar o gelo num saco plástico e envolver tudo num pano seco para que a água de condensação não entre em contato com as cnidas ainda não disparadas.
Compressas de vinagre ajudam a desativar o veneno.
NÃO use álcool nem urina nem outras soluções ou pomadas. Elas também podem ativar as cápsulas ainda intactas.
Procure auxílio médico.

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